Do lado de fora da janela chovia.
Não uma chuvinha fina. Chuva grossa. Pesada. Daquelas que te fazem não ter
vontade de sair da cama. Mas essa não era sua realidade. Não era um direito
seu. Pra quem tem que trocar oito horas diárias por dinheiro, esse escambo
capitalista, aproveitar a cama, a não ser nas férias ou na convalescença, é
algo proibido. Teve que levantar cedo, após a segunda chamada do despertador, e
tomar uma ducha fria, apesar do fraco inverno, para ver se acordava. Tateava os
móveis, ofuscada que estava sua pupila, a acomodar-se com a luz ambiente que
crescia ao alvorecer que lentamente surgia. Foi a cozinha, pegou um copo d’água.
Estava com muita sede. Lembrou dos remédios. Mais um copo d’água. Como era
vagaroso de manhã! “Um copo de café”, clamavam seus neurônios, para que
pudessem funcionar a contento. Realmente, sem estímulo, acordar parecia um
martírio. Não fosse ter deixado as roupas separadas, acrescentaria mais meia
hora, quarenta minutos, só no tira-e-põe de camisas, todas bonitas, mas não ‘adequadas’
para seu humor do dia. Volta a cozinha. Põe o café e a água na cafeteira, para
que ela trabalhe em paralelo aos seus preparativos para a saída. Lava a pouca
louça do jantar. Põe-na para escorrer. Remove o excesso de água sobre a bancada
da pia. “Tenho que consertar este vazamento do bebedouro”, pensa brevemente,
até ter sua atenção desviada para as plantas. “Nossa! Não molhei as plantas! Já
estão todas mortas!”. E corre para pegar uma panela qualquer, enche-a na pia, e
sai a molhar os vasos. “Cuidado pra não molhar demais as violetas, senão elas
vão melar”, sussurra sua mãe em sua mente. E mesmo assim as acaba molhando em demasia.
Olha-as fixamente por alguns instantes. Parecem eternos instantes! Lembra do
conselho da mãe, da imagem das violetas quase sem vida, em cores opacas, a terra
escura, entre as folhas maltratadas, denuncia que as molhou demais. “Não levo
jeito para estas coisas”, vaticina. E olha no relógio. “Meu Deus! Como consegui
perder tanto tempo?”. Sai correndo para arrumar a mochila. Recolhe tudo o que
vai precisar, ou não, pelo caminho, e atira em seu interior. “Por isso suas
mochilas não duram! Quer levar a casa nas costas, como um caramujo!”, briga
consigo enquanto, desarvoradamente, tenta se lembrar de algo que ainda precisa
fazer antes de sair. “Pense, pense, pense! Depois que deixar a portaria e pegar
o ônibus, já era!”, tortura-se sadicamente, fazendo com que tão mais distante
fique sua mente da objetividade necessária ao momento: lembrar o que precisa
ser feito antes de sair de casa. “Pense, pense, pense!”. E olha novamente o
relógio. “Ai, vou ficar um tempão no ponto! A esta hora, o trânsito já está
parado e terei que pegar qualquer um que passe! Provavelmente ficarei de
pé! Já vou chegar no trabalho cansado!”. Pega correndo as chaves. Elas tilintam
freneticamente no caminho entre o aparador e a fechadura. Não mais que 30
centímetros. Gira a chave. Duas voltas rangidas e a porta se abre. O corredor
acende-se automaticamente. Corre para o elevador. “Como demora! No mínimo um
irresponsável chamou o social e o de serviço ao mesmo tempo!”.
Inconscientemente, traveste-se de ‘irresponsável’ e chama os dois elevadores!
Não percebe que transformou sua vida em uma rotina mecânica e degradante! É
incapaz de ver o belo e chuvoso alvorecer de sua varanda, de consertar o
bebedouro, de regar direito as plantas. Parece uma máquina ensandecida! Um
monte de engrenagens, apenas. Incapazes de sensibilizar-se, um dia de cada vez,
tão preocupado que está, de ser um nada!
Nenhum comentário:
Postar um comentário